quinta-feira, 13 de março de 2008

MEMÓRIAS DE UM TRIÂNGULO ROXO



Trecho da pequenina-novela – e faz-se necessário dizer "pequenina":

Entendam vocês que estão lendo um cara que sabe das coisas. Embora muito já tivesse ouvido falar, conheci Adolf Hitler em uma padaria de Viena, não me lembro exatamente em qual delas. Naquela época éramos adolescentes, mas Adolf não tinha espinhas. E lá estava ele, tristonho em uma mesa, debruçado, balbuciando maldições, imerso em terrível desgraça por não acertar o ponto de um suflê de queijo.

Notem que naquela época eu trabalhava entregando panfletos para as Testemunhas de Jeová e posso afirmar-lhes de maneira categórica que tínhamos uma divisão de cozinheiros, muitos deles especializados em suflês. Eu estava certo de que seu erro era na manteiga e fontes confiabilíssimas comentavam á boca pequena que Adolf, quando deprimido, besuntava-se em gordura vegetal. O motivo era desconhecido.

É sabido que tal problema perdurou no âmago de Adolf Hitler até seus últimos dias. Mesmo em sua mais conhecida obra, Mein Kampf, escrita anos depois do que narro, é possível identificar traços de uma séria inadaptação ao uso de laticínios na cozinha alemã, mais do que isso, um forte desejo de estar nos fogões ao invés de estar no palanque de ditador. Em certo trecho de sua obra podemos ler:

"Quando, nas minhas horas livres, eu recebia lições de culinária na confeitaria de Lambach, tinha a melhor oportunidade de extasiar-me ante as pompas festivas das brilhantíssimas vitrines de restaurante. Assim como meu pai via na posição de pároco de aldeia o ideal na vida, a mim também a situação de cozinheiro pareceu a aspiração mais elevada. Pelo menos temporariamente isso se deu."

Então neste dia, neste fatídico dia em que Adolf Hitler chorava sobre a mesa e menestréis passavam pela calçada, ocorreu-me ajudá-lo de alguma maneira. Posso recordar que entre suas lágrimas e a mesa havia um prato de bolinhos de isca de peixe. Coloquei minhas mãos sobre aqueles ombros e incitei:
- É sabido sobre o seu problema com suflês, homem. É o que se comenta em Viena. Não se desespere, veja, os erros de um bom cozinheiro são revertidos em boas experiências, e os sabores de seus pratos terão o sangue deste sofrimento. O sofrimento do povo germânico, vivendo ele aqui na Áustria ou na Alemanha. A aflição de não saber usar o queijo, a manteiga, o leite, frutos destas tão puras vaquinhas, será compensado quando enfim fores bom cozinheiro, chanceler no manuseio destes produtos.

Permitam-me dizer que naquela época o apelido de Adolf era "Relaxadão". De acordo com observações de Nino Brandemburgo, o mais bagunceiro da classe, a maneira como ele sentava-se fazia jus á anedota.
Muito bem, muito bom, todo relaxadão sentado naquela cadeira, Adolf olhou-me com pesar nos olhos e disse:

-Acho que, bem, só se for alguém muito bom mesmo, o homem, em geral, não se deve ocupar com a produção de suflês antes de sua maioridade. Estou em constante experiência, cavalheiro. Não tenho culpa, não corro eu o perigo de um dia mudar de atitude sobre questões essenciais. Será eterna a minha paixão com o Pão Ázimo, por exemplo. Meio copo de azeite e temos a maravilha da cozinha judaica. A propósito, deliciosos estes bolinhos de isca...
- Mas cavalheiro, porque choras então? Porque os soluços? Serão falsos os boatos sobre sua incapacidade culinária?
- Ora, ora, acontece que aos meus suflês falta espírito, entende? Espírito! Qualquer essência, faltam-lhe isto.

- Eu achava que faltava manteiga! Ó, quão precipitadas foram as minhas conclusões.

Neste instante, Adolf Hitler, o Relaxadão, salta da cadeira de maneira abrupta, toca-me os cabelos e com empolgação (e certa força) beija-me no rosto. Engasgando com as próprias palavras, eloqüente e tomado por incrível ânimo (digno de seus posteriores discursos) diz a mim as seguintes palavras:

- Manteiga! Manteiga! Falta-me Manteiga! Este é o espírito meu caro cavalheiro, a manteiga! Colhida do puro leite das vacas de nossos bosques. O leite e os fabricantes de laticínio da Alemanha deverão continuar a ser no mundo estimados pela sua beleza e sabor, inspirando-nos a um ânimo nobre! Cavalheiro, sou eternamente grato a ti e a todas as coisas que me disse. No erro de um suflê, alí há o sangue sofrido deste povo. Estas sublimes tetas de nossas vacas, por anos humilhadas e colhidas em baldes imundos de povos estrangeiros, de povos ciganos.

Adolf toma neste instante uma expressão preocupada, como se uma dúvida houvesse acabado de chegar á sua cabeça. Senta novamente á mesa com o olhar fixo em algum horizonte o qual não alcancei. Nino Brandemburgo em seu livro (nunca publicado) "Relaxadão: Os segredos de um Hitler que eu, eu Nino Branbemburgo, conheci", cita-nos de maneira interessante que "Relaxadão estava sempre a vislumbrar qualquer horizonte inexistente, o que segundo Lothar Pirulito (seu melhor amigo durante a fase da alfabetização) dizia se tratar de "um devaneio sobre a vívida seara imaginária que ele carregava em seu âmago"."

Bem, naquela época não tive acesso aos manuscritos do Sr. Brandemburgo, desta maneira, não informado sobre a vívida seara imaginária, questionei Adolf sobre aquele brusco pesar que tomou-lhe o olhar. Ao terminar de ouvir minha indagação seus olhos marejaram enquanto descrente replicava:

- Cavalheiro, note, e quanto aos porcos?

"Porcos?" questionei sem entender:

- Sim cavalheiro, e quanto aos porcos? Campestres suínos de nossa gentil pátria alemã. Nossos leitões assados em cerveja, lombinhos com alho temperado, costeletas salpicadas de salsa e dispostas sobre batatas, nosso Fricadele que banha pãezinhos tão saborosos!

E então me veio á cabeça que na cozinha experimental de Hemmerman, a Testemunha de Jeová Vegetariana, havia uma placa disposta sobre os fogões dizendo "Não comam porcos e nem usem seus rabos como adorno". Intriguei-me com a situação e indaguei o futuro ditador sobre "o problema dos porquinhos", no que ele me respondeu tão eloqüente quanto estava quando falávamos de bovinos:

- Há quem os rejeite?

- Veja cavalheiro, é sabido que Joseph Hemmerman e Laureana Polvilhão, ambos membros da ala vegetariana das Testemunhas de Jeová, rejeitam a idéia de que porcos devam ser consumidos como iguaria. É sabido também que judeus são proibidos de consumirem sua carne e...

- Também os judeus são proibidos?

- Sim, é o que dizem.

- E por qual motivo?

- Talvez pelas unhas fendidas e os cascos divididos ao meio. Talvez pelo rabo e...

- O que o ponto de vista judeu vê na estrutura biológica suína?

Neste momento passei a roer as unhas e a fitá-las de maneira desafiadora, enquanto continuava a falar com Relaxadão, a fim de me despedir:

- Cavalheiro, me seria útil discorrer sobre a proibição da carne suína aos descendentes de Moisés, Salomão, o que o valha, mas de todo modo preciso partir, ainda tenho uma porção de publicações para distribuir e é melhor que eu me apresse antes desta terrível chuva que se aproxima. Não te preocupes Adolf com a rejeição de nossas salsichas, são elas a marca de nosso povo de modo que não deveriam estar presentes em outras culinárias, compreende?

Aqui eu volto a olhar para a mesa e percebo que Adolf não está mais lá. O trepidar da porta me faz entender que saíra de forma brusca. Então, paguei por sua conta ao simpático rapaz do balcão e segui com os meus afazeres daquele dia. Foi uma tarde chuvosa em Viena, e mesmo por entre becos úmidos e seus abrigos nunca mais naquela cidade vi Adolf Hitler.
- Rennan Martens
=)

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