quarta-feira, 11 de março de 2009

A POÉTICA BRILHANTE DE SÉRGIO FRUSONI

Pesquisando sobre sociolingüística e as influências do crioulo na língua portuguesa usada no Brasil descobri um interessante poeta de Caboverde, que escreveu seus poemas em crioulo, os traduzindo para o português usado em Portugal e foi objeto de estudo do pesquisador e crítico literário português Mesquitela Lima, e que me foi possível ter acesso a este material através de Simone Caputo Gomes da Universidade Federal Fluminense.

O poeta trabalha sua poética em torno de temas básicos à cultura de Caboverde, tais como a terra, a fome, o drama partir-ficar (chamado terra-longismo, que a meu ver é uma forma de exílio), sem deixar de lado um sentimentalismo, sensualismo, humor, auto-biografismo e a constatação da situação da mulher na sociedade crioula, que não o coloca como um poético panfletário-político.

Observem, leitores, alguns poemas de Sérgio Frusoni, com as análises de Simone Caputo Gomes.

No poema "Mnine d'Sanvicente", Frusoni alude a suas saídas de Cabo Verde, ao tema da emigração-regresso, tão cantado pela Literatura do Arquipélago:

E j'a m' bá e já m' bem;
já m' torná bá e torná bem;
e alí'm lí, de pê na tchôm,

sem um vintem, sem um tstôm,
tâ crê torná bá...
ma pa torná bem...

(Já fui e já regressei;
já tornei a ir e tornei a regressar;
aqui estou, de pés no chão,
sem um vintém, sem um tostão,
a querer ir...
e tornar a regressar...)

A técnica do retrato condensado atinge líricos momentos no "flash" da Pracinha e da Igreja, cartões postais do Mindelo:


Igreja Igreja
Cambra Câmara
Rua da Luz Rua da Luz
Camim d' cimter Caminho do cemitério

Dalí ond'ê que m' tâ Daqui onde estou
m' ti t' oióbe, nha Igrejinha: vejo-te, minha Igrejinha
semp caiadinha d' brónc sempre caiadinha de branco
por dentre e por fóra, por dentro e por fora,
semp tâ figurá sempre a fazer figura,
embora bidjinha! embora velhinha!


Os costumes da terra (como a culinária), as fontes de sobrevivência, a seca e a chuva, a fome, a pobreza, terão expressão nos poemas "Rebêra", "Dia de féria", "Pâ quês pardalim", "Lembróme", "Infancia" e "Calôte , fidje de pôbréza, praga de nôs terra". O Porto Grande e a chuva são focalizados em paralelo no primeiro texto, correlacionando a abundância da água e da lama, tão necessárias ao cultivo, especialmente do milho, à abundância de barcos, tão importante para a economia da ilha:


M' câ sabê de bô, Não sei de ti,
nem de fórça dêsse láma nem da força dessa lama
que bo ti tâ carregá pa mar. que carregas para o mar.
Sô m' sabê cma vapor Só sei que os vapores
já pitá na baía, já apitaram na baía
cma aligria d'ága já rebentá na ar. e que a alegria da água
[á rebentou no ar...]

O milho assado, o rabo de porco e o feijão malaguetado, a cachupa e o pãozinho de milho (midje assóde, rabim de tchuc, fejón malaguetóde, catchupa, pômzinha de midje) inscrevem-se em alguns poemas enquanto pratos típicos da cultura caboverdiana
Em contraste, o sofrimento das crianças por causa da fome é retratado no poema "Infancia", num resgate da memória que persiste no poema "Lembróme".

Lembróme bô perfil: Lembra-me o teu perfil:
nocênte (...) inocente (...)
Ma que já tá trazê, Mas que já trazia
sargide na pêle serzida na pele
dôr ma sufrimênte, a dor e o sofrimento,
sina de nôs pôve... sina do nosso povo...

Fôme cá prêsta! Fôme ê bjôm! A fome não presta! Fome é
[um horror!]

Ma ants fôme do qui pêste ma guérra! Mas antes fome do que
[peste na guerra!]

Fôme ta minguóne, ta incudjine, A fome mingua-nos,
[encolhe-nos]
ma quem ta morrê fête menine, mas quem morre feito
[criança]
ta torná nascê fête menine, volta a nascer feito
[criança]
de lá de barriga de terra! de lá da barriga da terra

No poema "Pâ quês pardalim" Frusoni focaliza a mulher que, depois de desmaiar de fome, preocupa-se com um saco onde levava restos de cachupa e tocos de pão. Interpelada (em português) por que não comeu o farnel, ela diz:

E...e côsa que m' tá levá... E...e o que é que eu levava...
quês...pardalim àqueles...àqueles pardaizi-
[nhos]
-Pardais?
-Sim...
Quês...quês...dôs fidjim...de meu... àqueles...àqueles...dois filhinhos...meus...

A mulher, retratada ora na sua situação de abandono, em virtude da emigração do marido, ora no trabalho, ora em situações humorísticas, ou em sua sensualidade ("marmél de bô pêite/ ta pedí dentada d'ôme" - os marmelos do teu peito/a pedir dentada de homem), constitui um tema constante na obra de Sérgio Frusoni.
No texto "Quand um palavra sô tâ dzê tude côsa" Frusoni ridiculariza a mulher que regressa de rápida viagem a Lisboa com hábitos e até pronúncia diferentes. Uma só palavra condensará a crítica do povo a esse tipo de personagem: PACIÊNCIA!

Um dia nh'Augusta infermêra,
desembarcá tâ bem d'Lisboa: (desembarcou, vinha de Lisboa)
luva, cartêra,
cabel caracolóde
cara pintóde
ta pscá confundi parcença. (procurando confundir a figura)

Um mudjêr q'tava ta passá,
pará tâ spial,
cabá el sucdí cabeçá el dzê:
_Nh' Augusta, nh' armôm, PACIENÇA!.. (ah!, Meu irmão,
PACIÊNCIA!...)

No poema-sketch (técnica recorrente em sua obra) "Pai d'Fidje", o poeta mostra a mulher que reza para que o marido viciado ganhe no jogo, para que seus filhos não passem fome e ela não apanhe:

Spiá pa fidje, quem? Ele? Adéh!
importal lá s'ês t'andá sfarrapóde,
ô sem cmê! Alá'l sentóde
na jôgue, êss ê que'l crê!...

Scompôl? Brigá ma êl? Cónta d' nada!
Remêde ê rezá, cmáde!
E pdí Nossiôr pa fazel ganhá,
pamóde s'êl perdê, êl tíntchóme d'pancada...

A situação quase permanente da mulher só, em virtude do abandono ou emigração do marido, ou do afastamento do filho que parte para trabalhar longe é constantemente referida em poemas como "Sirvice de criada ca tá dá têmpe pa nada" e "A volta":

Sim, êl há d'voltá. Sim, há-de voltar.
E cs'ê qu' m há dzê? E que lhe direi?
Cma m'speral? Que o esperei?
Cma m' sofrê?... Que sofri?

S'el ca creditá? E se ele não acreditar?
Cs' ê qu' m há fazê? Que hei-de fazer?
M' há mostral fidje, Mostro-lhe a criança?
ô m' ha fcá calóde? ou fico calada?

E s' êl bem el stranhá casa; E se ele vem e estranha a
[casa?]
esse nha magréza; esta minha magreza
esse portôm abêrte, este portão aberto,
ma esse lume pagóde?... e este lume apagado?...

E s'stude bem dá cêrte? E se tudo vier a dar certo?
S'el cabá d' entrá se acabar de entrar
êl corrê pa mim?... e correr para mim?
M' há pô tâ tchorá, Hei-de chorar,
ô m' há pô tâ rí?... ou hei-de rir?...

Este belíssimo texto dá a medida da dramaticidade da emigração em terras caboverdianas. Os poemas "Contratóde" (que fala da partida do contratado, escravo do século vinte, por força do regime colonial), "Navì ta bá, navì ta bêm" (Navio que vai, navio que vem), "Na terra strónhe" (Em terra estranha),"Despedida", "Chamada de mar", "Diante de mar de sanvicente", "Volta d'imigrante antigo" enquadram-se no ciclo do terra-longismo (partida/regresso, o querer partir e ter de ficar/e vice-versa), tão bem teorizado por Manuel Ferreira (FERREIRA 1972).
Por outro lado, o chamado da terra, a caboverdianidade, a anti-evasão expressa veementemente por Ovídio Martins em Língua Portuguesa: Não vou para Pasárgada! reverbera em outros textos como "Nha terra", "Cabvêrde", "Pa diante é qu'ê camim":

Ma lì qu' m'nascê Mas aqui é que nasci
lì qu' m' criá! aqui é que me criei!
Êsse mar, êsse cêu, ma êsse tchôm, Este mar, este céu, este
[chão]
Lì qu'm'ha morrê! Aqui é que hei-de morrer!

Idêa d'imbarcá Ideia de embarcar
nunca passóme pâ cabéça (...) nunca me passou pela cabeça
Antes fcá pa lì tâ gozá dêsse mar Antes ficar por cá a
[gozar deste mar]
ma dêsse cêu. e deste céu.

Conhecendo e amando Cabo Verde, é fácil entender o sentimento de Sérgio Frusoni.
NOTAS

1. Considero a tradução literária dos textos para o português como um corpus poético à parte.



Ricardo Celestino

Nenhum comentário: