domingo, 4 de maio de 2014

01 - REABERTURA


TRILHA SONORA RECOMENDADA





I

                    A fragilidade do homem e a supremacia dos lugares de poder






Durante anos evitávamos a rua, criando opções. Meu pai era construtor, mas não lembro bem o título que tinha no papel. Construía coisas para casa, remendava móveis, reparava o que quebravam e, quando sobrava tempo, criava. Suas remendas e criações eram bem infantis e precárias, variando de rústicos brinquedos a acentos e mobiliários esquisitos que não duravam muito tempo. Lembro, como se fosse hoje, do forte cheiro de cola que tinha o cantinho de meu pai. Era um cômodo pequeno e apertado, cheio de coisinhas: serras, martelos, pregos, parafusos de tudo quanto é tipo e muitas coisas. Umas completas, outras pela metade, ele tinha ali o seu espaço de criação. Naquele mundinho era Deus. Mas era o Deus mais bagunceiro que eu conheci. Não tinha muito jeito para a coisa. Quase sempre não se encontrava em seu canto. Vivia reclamando que tinha aquela função por uma imposição, quase que medieval e divina, de seu pai e seu avô. Ambos foram marceneiros. Os melhores. Ambos trabalharam duro para garantir a casa que morávamos. Ofereceram o cargo ao meu pai, mas esqueceram de lhe dar a habilidade e os atributos. Ele reclamava.

Levantava cedo e ficava naquela salinha. Quando não íamos à escola por algum motivo, via sua rotina, quase que sonolenta, de trabalho. Com um cigarrinho no canto da boca, roupas de ficar em casa, ele acompanhava o mundo em um rádio mal sintonizado, mantinha-se acordado com um café amargo e ia, vagarosamente, arrumando aqui, arrumando ali. Não tinha muito serviço, então fazia o tempo render. E ele fazia isso para ter o que dizer na hora do jantar. Para ter como maldizer pessoas que viviam nas ruas sem função. Porque ele, ele ficava naquela salinha mal iluminada oito horas diárias, contadas no relógio. Produzindo, dizia. Trabalhando, dizia. Com o foco ali. E aqueles vagabundos que viviam nos botequins queriam, para meu pai, a vida fácil. A vida da vadiagem. Ele sempre os pegava de exemplo. Minha mãe dizia:

- Seu pai sempre precisando de um Cristo.

E meu pai reclamava. Mas não reclamava só de sua condição de marceneiro. Seu verbo soava análises sobre o mundo. Às vezes o tinha como um cientista. Entendia de tudo. De todos os assuntos que apareciam na televisão. E ele falava com propriedade. O assunto estava na ponta da língua. Se estivesse no lugar de todas aquelas pessoas que comandavam as coisas, o mundo seria muito melhor. Certeza que seria. Eu me perguntava, vendo-o muitas vezes exaltado com a caixa preta, porque é que as pessoas não davam ouvidos para o meu pai? Se elas o escutasse, aqueles problemas todos que eram noticiados não estariam acontecendo e teria mais espaço na televisão para passar coisas legais. Eu gostava de desenhos. Os desenhos que meu pai também criticava. Ele dizia que o desenho transformava a gente em paquiderme. Não deixava a gente sair pra rua e exercitar o corpo. Deixava a gente burro, porque ninguém sobreviveria a uma rocha na cabeça. Deixava a gente viadinho, porque não era legal chorar com a quarta morte de seu personagem japonês favorito. E ele tinha outras queixas a fazer com o mundo. As diárias. Aquelas que se repetiam, às vezes, quase que duas vezes por dia. Era a crítica direta, na forma com que ele, o mundo, entendia as coisas. Porque naquele tempo, tudo que precisávamos conseguíamos a partir de um acordo de trocas. Eram acordos de serviços, como chamar uma moça em casa para passar roupa, permissões, como deixar minha mãe sair e voltar com várias sacolas de sapatos, joias e maquiagens, ou homenagens, como presentear a mim e a meu irmão com brinquedos e passeios. Chamavam, no costume, o acordo de lucro, dinheiro. E o dinheiro era um vilão para o meu pai. Para ele, aquele acordo de troca era muito desigual. Meu pai tinha que consertar e criar em grandes quantidades para conseguirmos coisas triviais do dia a dia. E isso ele sabia amaldiçoar como ninguém. Porque ele não era bom em consertar, todo mundo sabia disso. Aí ele tinha pouco serviço. Aí ele amaldiçoava o pai e o avô. Aí ele amaldiçoava o tempo, porque já não dava mais para ele ser outra coisa. Então, vivíamos num fogo cruzado, na corda bamba do mundo. Escolhíamos um dia do mês para certas atividades, como por exemplo, comer o que todos comentavam, assistir a um filme que todos assistiram, ir a lugares que todos iam, desde que não exigisse uma locomoção muito complicada e que pudéssemos chegar com a resistência de nossas pernas.




Certa vez, vimos na televisão um novo sanduíche que vinha com um brinde de presente. O brinquedo em si era de péssima qualidade, dizia meu pai, assim como o lanche, dizia meu pai, mas a publicidade transformava aquilo tudo em uma terrível tentação, dizíamos nós, com outras palavras. Eu e meu irmão mais novo, sempre que víamos a propaganda gritávamos pela atenção de minha mãe, que calma como sempre, nos dizia, seu pai não tem dinheiro, espera o fim de mês. E queríamos. E atormentávamos. Até que em um dia de um mês, meu pai anunciou para nós:

- Vamos ao Shopping comprar esse diacho de lanche.

Andamos por duas horas. As horas foram contadas no meu relógio de pulso, batendo com o do meu pai. Saímos de casa às 11:00. A caminhada era longa, com declives de subidas e descidas. Raramente eu olhava para frente. Tinha a mania de caminhar apreciando o que já fora. Admirava demais cada detalhe da vida urbana: pessoas esparramadas no chão, de qualquer jeito. Homens com pressa. Mulheres com pressa. Esbarrões sem desculpa. Uma moça que conversava, histérica, ao celular. Um rapaz que bebia um refrigerante e mastigava um hambúrger, enquanto andava. Outro que corria para pegar o ônibus e amaldiçoava o motorista, por ter se atrasado cinco segundos e o ônibus partir sem levá-lo. O que mais me espantou foram os senhores e crianças que passavam pedindo dinheiro para o meu pai. Eram pessoas de tudo quanto é jeito, que eu nunca tinha visto em lugar nenhum. Um homem tinha parte da face deformada, o nariz torno, a boca virada, poucos dentes. Grunhia algo que só era entendido mesmo devido aos gestos que fazia. Uma criança magra, suja, com escoriações na face e no corpo. Um garoto ainda mais novo, ainda mais sujo e ainda mais magro, imitando o gesto. Me espantei com a crueldade que meu pai os tratara. Um garoto se referiu a meu pai por senhor:

- Senhor ajuda eu com uma moedinha, pra comer?

Meu pai, que teve que esperar quase um mês para nos permitir um lanche feliz, respondeu:

- Porque teu pai não arruma um emprego, hein? Vai, vai. Some daqui!

Era isso. O menino ficou lá, murmurando palavras que fizeram meu pai olhar pra trás e o garoto correr de medo. E todo mundo fazia exatamente a mesma coisa. Ninguém os via. Somente os enxergavam como obstáculos no trajeto. Desviavam e quando a abordagem era inevitável, embruteciam, xingavam, davam de ombros. Talvez fosse uma verdade que ninguém queria engolir: aquele mundo tinha gente em condição de morto-vivo. Aquelas pessoas andavam com a repugnância de não saberem, ao certo, se viviam, morriam ou morto-viviam. Mas eles tinham intererassões interessantes um com o outro. Brincavam, riam, xingavam. Tinham cachorros também. Os cachorros e os meninos. Os velhos. Todos de Graciliano. Andavam pomposos, latiam, entravam na brincadeira. E quando tinham que correr, corriam. Unidos, se espalhando como formigas em formigueiro. Enquanto andávamos vimos um casal distraído. O homem andava com a carteira aparecendo no bolso de trás. Um garoto correu e pegou. Atravessou a rua como um jato, forçando freiadas bruscas. O ex-dono da carteira foi atrás, mas mal começou a correr, veio um maior e lhe deu um encontrão, o forçando perder o ladrão de vista. Depois esse também correu, sumiu, como bala, em outro sentido. Era muita gente. Ninguém preocupada com mais um desavisado que perdia a carteira.

Tudo isso me forçava a andar olhando para o pé, para trás, para os lados, menos para a frente. Raramente para frente. Até que chegamos em um salão monumental, com portas imensas. Um castelo, como víamos nos desenhos e filmes. Mas lá morava muito mais gente. E circulavam muito mais pessoas do que nas ruas. Contudo, percebi que as pessoas escolhiam as roupas para a ocasião. A mudança da rua para o castelo era gritante. Aquele lugar pedia que você usasse sua melhor roupa, a mais bonita. Claro, se todos fossem lá com a mesma frequência que nós íamos, aquele era um momento especial. Especial para todos nós. As pessoas andavam muito bonitas e, aparentemente, felizes em vestirem-se daquele jeito. Uns exageram muito na escolha. Vi um rapaz com os cabelos verdes, espetados e pra cima, junto de um grupo com cabelos ainda mais esquisitos. Vestiam couro, botas grandes, e quando passaram por nós meu pai os olhou com aquela cara de quem olha alguém para arrumar encrenca. Todos ignoravam todos. Um homem me viu porque o esbarrei no calcanhar. Ele grunhiu um nome alto de dor e, quando me viu, brincou com meus cabelos e foi embora. Continuamos andando, avançando ainda mais naquele monumento que meu pai chamara Shopping Center. Shopping Center do cassete.

Tinha três galpões um em cima do outro. O acesso era por escadas que giravam sozinhas. Em cada galpão, várias casas com pessoas fazendo trocas uma com as outras. As pessoas que vinham para passear, tal qual nós, eram muito exigentes com as trocas. Passavam horas e horas olhando os objetos por trás de um vidro e não adquiriam nada. Minha mãe era uma delas. Ficou horas admirando uma bolsa, que parecia muito com a que estava no ombro, mas não a trocou. Ao seu lado, uma senhora com cabelos loiros, volumosos, parecia o palhaço  que fazia a propaganda do meu lanche. O dela era amarelo. Tinha pérolas grandes nas orelhas, óculos escuros que lhe cobriam quase que os olhos, a testa e as bochechas. Aqueles visores lhe garantiam a arrogância de seu portar. Não se sabia ao certo para quem ela olhava, mas sabia quem ela esnobava: a todos. O homem responsável por todas aquelas mercadorias, ou bostas, como dizia meu pai, aproximava-se da senhora e era despachado com grosserias e palavras breves. Ele, me admirando, insistia no contato e ela tornava a distanciá-lo. Até que fora vencida pelo cansaço. Com petulância, pediu ao homem que descesse pilhas e pilhas de calçados e levou, dentre todos, um. Minha mãe namorou todos os pares que aquela senhora fantasiada experimentara.  Meu pai, vendo que minha mãe desejava tanto aquele objeto, fez o que sempre fazia: nem sequer um esforço para ser gentil. Ficara com o olhar acabrunhado, reclamando de tudo, meditabundo em seu mal-humor. Quando ela lhe exteriorizou o desejo, tudo que fez foi lhe olhar. Ignorou e pediu que fôssemos andando. Senti vontade de pedir a mulher fantasiada que desse um dos pares a minha mãe, já que ela desprezara tantos, mas meus pais ficariam bravos, chiliquentos, e, como das últimas vezes que tive esse ímpeto, receberia uma surra. Então andamos. Vimos mais vitrines, minha mãe se encheu ainda mais de desejo e meu pai de introspecção. A cada loja, um comentário, a cada comentário, um silêncio. Reparei também que a cara do meu pai combinava muito com a cara de outras pessoas naquele ambiente. Todas pareciam encher-se de um gozo transbordante e transcendente e, em seguida, voltar-se a si com uma rabugência da impossibilidade. Todos precisavam muito de tudo que viam ali. Se conformavam em não ter. Os objetos eram para exposição. Os objetos eram para poucos, premiados e sortudos. Contudo, a exposição era suficiente para muita gente. Principalmente para minha mãe. O prazer entre a posse e o desejo da posse era o interessante naquilo tudo. Como na vez em que minha mãe namorou durante horas um perfume que uma moça passava vendendo de casa em casa na minha rua. Foram semanas falando da fragância, do frasco, do preço e até dos benefícios daquele objeto. Meu pai, não aguentando mais tanta indireta, comprou o perfume. Minha impressão era que minha mãe acabaria com o líquido em dois dias. Comemorasse a conquista do tão sonhado perfume com festividades e mostrasse a todos o que conseguiu. Mas não. Por dois dias sentimos o cheiro perfumado em seu corpo. No terceiro, ela deixou-o de canto, para enfeitar a penteadeira. No quarto dia já tinha desejo por outras coisas. O perfume só serviu mesmo foi de argumento para o meu pai, quando minha mãe pedia alguma coisa.

Andamos por, mais ou menos, vinte minutos. Notei que, involuntariamente, até meu olhar já era perturbador e pedia clemência por um lugar para sentar e um prato de comida. Todos estávamos cansados. Exceto minha mãe. Ela não se exauria em desejar o que jamais teria. Gostava de apreciar tudo, desde os badulaques mais inúteis até aneis, colares e brincos com o valor de três, quatro, cinco dígitos que jamais alguém o usaria. Meu pai dizia serem adereços de pavão, para tudo que minha mãe via. Quando chegamos no limite de nossos pés, estômago e paciência, meu pai disse, vamos comer. Parecia que minha mãe tinha recebido um golpe naquele momento. Um golpe que lhe ofendera sete gerações familiares. Ela fechou a cara e caminhou distante, mesmo ao lado de nós e de meu pai. Percebi que meu pai ganhara uma parceira para sua rabugice. Ao longe, conforme andávamos no último andar do Shopping, avistei o símbolo que víamos na televisão, o lugar que vendia o lanche feliz. Eu e meu irmão corremos na frente. Notei que outras crianças faziam o mesmo. Ao chegar perto do local, um susto. Nunca vi tanta gente junto. Era um salão pequeno, com um balcão e por trás dele, a cozinha onde as pessoas faziam os sanduíches. Não vi nenhum desenho animado pululante fazendo graças em aventuras. Preferi, de cara, meu lanche da televisão. A recepção, a alegria, o conforto e até o desejo de consumir o que divulgavam era muito maior do que na vida real. Do balcão até meu pai tinham cerca de, na minha perspectiva, umas trinta, quarenta pessoas. Demoramos mais vinte minutos para sermos atendidos e aquilo nos fatigou todos. Pedi, pedimos para irmos embora, mas meu pai, brutucu de nascimento, nos fez ficar por lição:

- Vocês querem é me deixar louco! Com tanto trabalho, me fizeram sair de casa. Agora vão engolir essas porcarias de lanches goela abaixo!

Na nossa vez, meu pai pediu dois lanches felizes - um para cada filho da família. A garota que nos atendia vestia um uniforme engraçado, colorido, com boné e alegria. Seu semblante era de uma pessoa stressada. Quando meu pai perguntou quanto era, ela o olhou com carranca e disse:

- Cinquenta reais.

Por alguns minutos meu pai pareceu congelado. Aquele semblante que já sabíamos identificar nele. O olhar de consciência, a epifania do impulsivo. Ele não tinha consultado o preço dos lanches. O fato de ser sempre impulsivo era o principal defeito de meu pai. Era um homem de impulsos em sua calma e em sua ira, em seus anseios e em seus desejos. Raramente racionalizava o mundo. O meu pai era movido pela emoção da pressão arterial. Quando se dava conta de que faltara a racionalidade de um planejamento, mínimo que fosse, como por exemplo consultar o preço de um sanduíche, ele nos admirava com aquele semblante de desrumado. Eu já sabia reconhecer o semblante e os números, pois ele me ensinava em casa, sempre que dava. Na mão dele tinham três notas de dez. Era isso mesmo. Três notas de dez. Três vezes o número dez, segundo meu pai, era trinta. Precisava de mais duas daquelas. Ele as segurou entre os dedos, quase que frouxamente. Se um esperto passasse naquele momento, tiraria a sorte grande. Ele olhou para minha mãe, minha mãe o olhou complacente. Ele nos olhou, guardou as notas e disse:

- Vamos sentar ali um pouquinho para eu pensar.

Nos sentamos em um banco de frente para a lanchonete. Minha mãe segurou meu irmão no colo e eu fiquei ao seu lado, quieto. Meu pai começou a andar e conversar com as pessoas da fila. Não entendi muito bem o que ele dizia, mas abordava alguém e com um olhar muxoxo, falava, nos apontava e falava de novo. Uns o ignoravam, o tratavam com rispidez. Me lembrei do percurso de casa ao Shopping e percebi que ele faria a mesma coisa se visse a si mesmo naquela situação. Até que um casal de senhores, ao nos avistar quando meu pai nos apontou, gesticulou para que eu e meu irmão chegássemos perto dele.

- Eu pago seu lanche, filho. Teu pai pode guardar esse dinheiro para voltar de ônibus com vocês.


Eu dei-me por satisfeito. Fiquei feliz. Sorri. Meu pai estava era vermelho. Nunca o vi daquela cor e nunca o vi tão desejante de tornar-se invisível. Mesmo porque, se a rua fosse a moradia de um nada, ser pedinte era o ofício daqueles subjulgados por meu pai. Daí então, sim, comemos o lanche feliz tão esperado, ganhamos o brinquedo que tanto queríamos e voltamos para casa. De ônibus. Tudo parecia perfeito demais para eu e meu irmão, mas meu pai e minha mãe voltaram emudecidos. Nem se falavam. Só se olhavam, nos olhavam, resmungavam. Ficaram ali, mas em outro lugar. O humor deles fora tão contagiante que eu decidi, em acordo com meu irmão, nunca mais pedir nada daquelas coisas para eles. Se fosse para nós sorrirmos e eles ficarem daquele jeito, era melhor que a gente aguentasse a tristeza, porque eu sabia qual era o limite da minha ansiedade, dentro de mim. No outro, a tristeza doía muito mais. Mas éramos crianças. Era difícil controlar a ânsia do desejo. Principalmente do desejo consumista de vermos na televisão e no corpo dos outros, coisas que dificilmente teríamos a chance de ter ou usar. Era muito complicado nos acostumarmos a não termos um computador, um tablet, um video game de última geração. Mais complicado ainda era admitirmos a impossibilidade para os outros. Nos assumirmos atrasados a toda uma tendência daquela humanidade que nos olhava, nos julgava e nos formava era admitirmos incapazes, ineficientes para constituí-la. Era como se, em um mundo de maratonistas, todos andassem e nós não tivéssemos pernas. Corríamos como podíamos, com as mãos arrastando o tronco do corpo, com cotoquinhos de pernas murchas. Não adiantava nem sonhar em ter a mesma velocidade que os outros. Ficávamos para trás mesmo. Aproveitávamos a tendência do mundo passado, no tempo presente. Jamais nos acostumaríamos com aquilo. 

continua na próxima postagem, em 11/05/14

segunda-feira, 22 de julho de 2013

A UM ALÉM QUE ESTEVE, HÁ POUCO, AQUI... A MANEIRA INCOMPLETA DE DESPEDIR-SE COMPLETAMENTE.

Uma despedida. Como prepara-se para uma despedida repentina? Como organizar-se, objetiva e emocionalmente, para um adeus? Como despedir-se de alguém ou algo sem deixar para trás o que não foi? Como recuperar, na despedida, o não feito? Como compreender que somos carne, osso e incoerências? Como não valer-se da lágrima para justificar alguma ausência? E como despedir-se? Como ilustrar bem feito o adeus que merece, de direito, o despedido? E se esse adeus, repentino e rápido, dilacerador, mesmo quando aguardado, não dura os dias, suficientes para um bom planejamento? O beijo, o abraço, o corpo debruçado sobre o corpo despedido, são suficientes para um adeus compreensível? Qual o segredo da boa despedida? Basta dizer, adeus, te amo, queria que não fosse, poderia ter sido diferente, a culpa foi minha, a culpa foi tua? O culpado, afinal, é a gente? Se para despedir, assim repentinamente, eu tenho tanto dolo e tanta pena, pergunto pra que a vida? Será ela, o ensaiar da despedida? E se a vida é assim, projeção do que é fim, o que fazemos dela, o que fazemos, enfim? Será a vida, preparativo da despedida? A sorte de escolher as estratégias certas para um adeus perfeito? E a ausência de vida? Será que existe a presença, ainda infinda, do presente sorriso de vida? Pedir ombro, quando não se tem mais ombro, é saber despedir-se, enfim, da vida?


domingo, 14 de julho de 2013

09 - UM ENCONTRO COM A SAUDADE

Brand entrou na frente, pela porta principal. Quando abriu, uma cortina de fumaça me cegou e só consiguia escutar homens repetindo versos em um idioma desconhecido. Reconheci, pouco a pouco, que o que eles falavam ia tomando a forma da língua portuguesa e os versos se repetiam, como um mantra ou uma oração e eu passei a ouvi-los tentando decorá-los.


Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras...
As primaveras do sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde!

Eu olhei para Brand e ele me olhou, carrancudo:

- O trovador, de Mário de Andrade.

Sabia já ter ouvido aqueles versos em algum lugar. Mas soavam diferentes. Eram estridentes no ouvido e estouravam em meu cérebro. Senti meus ouvidos sangrarem e, ao passar a mão próximo de minhas orelhas, meus dedos estavam úmidos de sangue. O som daquele idioma ferira meus tímpanos pela falta de costume em apreciar bons poemas?

Sou um tupi tangendo um alaúde

E eu não conseguia entender lógica naquilo tudo. Conforme a fumaça diminuia, fui percebendo que a sala de estar estava enfeitada com inúmeros quadros de pinturas históricas, algumas esculturas e livros abertos em exposição. As pessoas se reuniam no centro e nas bordas ficavam os materiais de exposição. Percebi que eram obras de datas distintas, todas misturadas, tendo um Picasso ao lado de um Da Vinci. Contudo, existia uma simetria, ou lógica na organização das obras que eu não conseguia identificar.

Sou um tupi tangendo um alaúde

Fiquei durante alguns segundos hipnotizado com a quantidade de esculturas e quadros que enfeitavam a sala. A arquitetura da sala também era curiosa, pois parecia gótico-medieval, com o pé direito alto que oprimia o homem o tratando como uma mera formiga dentro de um arranhacéu maior do que  o ser humano. Divinamente superior a todos que ali estavam. A própria casa nos engolia com seu pé direito enorme. Sentia-me chutado. Em meio às pessoas que repetiam o mantra, surge um homem negro, de bermuda vermelha, sem uma das pernas, sorrindo em minha direção. Pensei em saudá-lo saci, mas lembrei de minha conversa com Brand e sorri reciprocamente.

- Olá...
- Brand. Roberto. Esperávamos vocês.

Brand o saudou e deixou-me para trás, andando em direção às pessoas da sala.

- Ele é sempre tão...
- Você o chamou de Leprechaun?
- Como não chamar?

Sorrimos.

- Desculpe ir direto ao ponto, mas quem são vocês?
- Nós? Somos parte de sua história. Também somos caçadores da saudade. Todos temos um motivo para sauda-la. Eu, no caso, sinto falta de minha floresta, meu cachimbo, meu gorro vermelho e minha juventude. Sou simplesmente um saci urbano.

- Eu... Fiquei com medo de chamá-lo saci, depois de conhecer Brand.

- Sei como é. O Brand cumpriu seu papel. Bem, ele é o guardião de um tesouro. Quando alguém aprisiona Brand, ele precisa lhe conceder um tesouro. Lhe apresentou para nós, o tesouro intelectual de toda essa região.

- Todo tesouro intelectual está nessa sala?

- Não. Jamais! Nós somos a base para que você entenda o tesouro intelectual de toda essa região.

- Certo.

- Mas você não veio aqui a trabalho.

- Não. Eu busco, na verdade, achar um caminho de felicidade e parece que a Saudade tinha a resposta e eu desperdicei a chance de consegui-la. Queria encontrá-la novamente. Conversar, anotar todas as suas palavras...

- Você é jornalista. Porque não inventa sua felicidade?

- Não sei. As coisas não são tão simples assim. Eu acho que necessito de algo real dessa vez.

- Entendo. Você acredita que o real existe?

- Oras.. É cla... Não sei.


- Ao invés de me chamar de saci, me chame de Matinta. Venha, vou lhe apresentar ao meu amigo Curupira. Ele vai te apresentar a casa e te guiar para seja lá onde for.


domingo, 7 de julho de 2013

08 - UM ENCONTRO COM A SAUDADE

O nome do Leprechaun era Brand. Tinha uma bebida com esse nome, mas eu nunca tomei. Ele não gostava do batismo que eu lhe dera, quando sairamos do PUB. O chamei duas vezes de leprechaun, amigo anão, gnominho, e ele fora se emudecendo, ficando cada vez mais monossilábico até me dirigir um silvo de ódio acumulado:

- Meu nome é Brand! Presta atenção! Só vou falar uma vez! Meu nome não é leprechaun, não é Tumores, não é Duendes, não é  Gnomos, não é leprechauns, nada disso! Você acredita mesmo que alguém se chama Amigo Anão? Essas coisas são rótulos que classificam minha espécie. Eu sou Brand. Brand, o irlandês.

- Desculpe. Eu pensei que...

- Convenhamos que você não é lá muito bom com pensamento.

- E... Espera um poquinho, o irlandês não é uma classificação? Então, eu posso te chamar de Brand, o gnomo?

- Tente repetir isto e eu extraio todos os dentes que você tem na boca a sapatadas. Resto de nada!

Dirigi cerca de duas horas com Brand me injuriando a respeito de como chamar as pessoas e como sua espécie era reduzida a simples classificações. Insisti que aquilo era normal. Era a primeira impressão que se tinha de um povo, de uma cultura. Expliquei-lhe que como jornalista, nossa função era especular pelo estereótipo, para depois formar um conceito. Era olhar para o todo, entendê-lo a primeira vista e depois compreender as partes. Se tivéssemos tempo para isso, claro, mas isso eu não revelei a ele.

Era mais comum que nunca desse tempo para nos aprofundarmos o suficiente em algum caso ou tema. Eu fui descobrir The Killers muito tempo depois de falar bem de dois álbuns lançados. Achei bom, não achei MUITO BOM, como minha coluna o classificava, mas assim era a vida. Somos metamorfoseados pela pressa do ganho capital, que reflete até nas nossas escolhas culturais. Muita gente não assiste filme indiano, porque correr o risco de passar nove horas em frente a uma televisão é correr o risco de perder nove horas de vida. Ninguém tem tempo a perder, embora a vida dessas pessoas seja uma grande perda de tempo para mim. Eu gosto muito de filme indiano.

- O motivo de minha espécie ser reduzida a gnominhos de chapeus verdes, fazendo mágicas e milagres por ai, são seus malditos jornais!

E ele tinha muita razão, mas não eram todos os jornalistas que tinham essa postura de estereotipar as pessoas.

- Cita-me um que comprove essa sua tese.

Eu pensei muito e preferi ficar quieto. Tinha a desculpa da massificação da notícia. Éramos obrigados a falar de muita coisa, muito rápido. O que ele queria, afinal? Aquele Leprechaun idiota tinha que fazer por ele. Sempre ofuscado em contos infantis, jamais lhe dariam o crédito desejado.

- Então, agora a culpa é nossa? Camarada, eu nunca vi uma fadinha na minha frente. Sabe como somos conhecidos, na boca do povo?

- Não.

- Sapateiro das fadas. Isso mesmo! Sapateiro das fadas. Você já viu alguma porra de fada usar sapatos?

- Não.

- E aí, você acha justo? Esse diabo de estereótipo surgiu graças àquele condenado do Victorio XIII, que ficou com dó de um escritor bêbado e vagabundo e lhe soprou essas histórias no ouvido. Ninguém nunca se deu o trabalho de ver se estas histórias eram verdadeiras. Acreditaram e reproduziram! Graças a vocês!

- Perae! Não existia jornalista nessa época!

- Mas existiam esses malditos poetas. Malditos poetas apaixonados!

- O que era a paixão naquela época?

- Era você torrar todas as suas esperanças na porcaria de um ideal. Não há um ser, que não seja o humano, que não se sensibiliza com a causa de um maluco apaixonado. Apaixonados, normalmente, perdem tudo até chegar no nada!

- Você conheceu muitas pessoas apaixonadas?

- Muitas. Elas são os seres mais insuportáveis desse mundo!


Chegamos numa casa assobradada e eu não fazia a menor ideia de onde estava. Sabia ser São Paulo, pois só percorremos bairros. Ele acionou o portão automático que deu acesso a uma garagem. Lá dentro, cerca de dez carros e uma vaga livre onde estacionei o meu.


sexta-feira, 5 de julho de 2013

A INFÂNCIA UTÓPICA.... A INFÂNCIA DISTÓPICA... A INFÂNCIA RETORCIDA DE AIRTON SOUZA!!!

E se foi à infância, diz o poeta. A se afastar de mim, complementa. Mas ficaram o olhar distante e saudoso de todas as consequências e marcas por ela deixada. Ficaram a utopia e a distopia de uma fase da vida. Utopia, pois inevitavelmente lembramos das coisas boas de nosso passado, daquilo que era e não será mais. Lembramos até das tristezas com a positividade do amadurecimento, com a frivolidade do já saber o que é que deu. Festejamos os sucessos e buscamos encontrar lógica no bem que temos, com o bem que colhemos, embora sejam analogias muito mais metafísicas, talvez hermenêuticas, do que científicas.
E a distopia da infância merece um parágrafo próprio. Porque junto do pensamento positivo e utópico da infância que era e já foi, sabemos, no fundo, que a infância quando não vinda é uma agressão aos padrões camonianos. A infância, quando mal vinda, é um mar de antíteses, é o distanciamento do ideal perfeito que choca por ser real e possível. A infância, quando mal vivida, torna-se atópica pela violência de sua expressão. A infância, que existe, não é assumida no mundo como uma má-infância, mas como um pulo prematuro para a fase adulta. Ocultamos a criança mal-vivida. Ocultamos a criança mal-nascida. A preconcebemos adulta no ventre do pai barroco. No ventre do pai anti-renascentista, anti-classicista, que sem opções, agarra a opção que tem.
A criança que trabalha, cuida da casa, busca opções para sua sobrevivência devido à falta de assistência social, não deixa de ser criança, não deixa de pensar e agir como criança. A criança que corre e age como adulto, que se define adulto por cargo imposto, quando cresce, porque essa criança também cresce, não deixa de ser utópica, sonhar, buscar melhorias nas escolhas que tem disponível para si. E falemos dos sonhos, porque ser criança é sonhar... e foi a partir dessa antítese, infância utópica e infância distópica, que consegui aproveitar cada verso das poesias de Airton Souza, em Infância Retorcida. Muito mais que um livro íntimo e pessoal, a poesia cresce nas releituras de seu texto e da nossa vida e da vida dos nossos outros.

E se foi à infância
                               a se afastar de mim
sem olhar minha face
em fases, pedaços.

Rumou quebrando-me, retalhando
Memórias que ficaram,
Fincaram, na (re) invenção
De cheiros que não a deixa morrer.



AIRTON SOUZA publicou os seguintes livros: Incultações noturnas (2009), O cair das horas (2011), Habitação provisória (2012) e rua displicente (2012). Atualmente é professor na Escola Municipal Irmã Theodora, localizada no bairro Liberdade, em Marabá e Membro Perpétuo da ALSSP – Academia de Letras do Sul e Sudeste Parense, com sede em Marabá, sendo eleito por unanimidade para ocupar a cadeira nº 15, tendo como patrono o poeta paraense Max Martins. Pertence ainda a ALG – Academia de Letras de Goiás, como Acadêmico Correspondente – AlaF – Academia de Letras e Artes de Fortaleza, como Acadêmico Correspondente e Membro da organização chilena Poetas Del Mundo. O autor é também membro do CNPC – Conselho Nacional de Políticas Públicas Culturais, para o Livro, Leitura e Literatura, do MINC – Mininstério da Cultura.


domingo, 30 de junho de 2013

07 - UM ENCONTRO COM A SAUDADE


O Tatuapé. A Esperança me recomendou o Tatuapé para tentar me reencontrar comigo mesmo em minha adolescência e, quem sabe assim, conseguir encarar melhor o presente.

Entrei em um PUB irlandês com bandeirolas verdes e laranjas decorando o ambiente interno escuro e rústico. Era festa e de comemoração ao Saint Patrick. As melhores recordações que eu tinha de minha adolescência eram nas comemorações de Saint Patrick. O local se transformava de um lugar triste, vazio e intimista para uma grande festa alegre com pessoas bêbadas e simpáticas querendo testar os limites de elegância, vaidade e sexualidade em uma única noite.

O bar estava lotado. Enquanto não havia um lugar para sentar, pedi uma caneca de cerveja verde e fiquei no balcão. Mal chegara minha bebida e um casal se movimentava para pagar a conta.

Encontrei um sofá livre.

Assim que eles saíram, me acomodei. Por coincidência, era o lugar que sempre ficava em minha adolescência. Contudo, o PUB se sofisticara. No porta-guardanapos havia um botão vermelho que imaginei, chamava o garçon. O garçon não era mais apenas o dono do PUB. O garçon se multiplicara em muitas pessoas uniformizadas que serviam muitas mesas e não tinha mais tempo para lhe servir o espírito. Para um cara como eu, ir ao bar não era apenas uma necessidade alcoolica, mas também afetuosa. O afeto, muitas vezes era correspondido pela companhia do dono do bar. Uma figura que passava a ser quase folclórica no Tatuapé.

Apertei o botão e surgiu ao meu lado um homem minúsculo, muito parecido com um leprechaun irlandês. Eu não me assustei pelo milagre da aparição, mas pela falta de aviso. Sorri. Em sua mão, ao invés de uma caneca de cerveja, ele segurava um tênis all stars rasgado. Olhou-me, lhe ofereci minha bebida a ele. Ele sorriu e aceitou. Pedi outra que veio muito rápido.

Por alguns minutos não conversamos. Ele parecia muito concentrado em apreciar-me. Pouco sorria. Era um tipinho engraçado se fosse simpático, mas com aquele olhar carrancudo, vestido naquelas roupas fora de época, mais assustava do que alegrava.

Depois de alguns minutos, decidi quebrar o gelo.

Olá. Você é...

Tumores, Duendes, Gnomos, eu tenho muitos nomes. Você é... – a resposta era fria, tão fria que não combinava nada com o estereótipo que ele carregava.

Eu sou... eu sou o Roberto. Sou jornalista e...

Tudo bem. Tudo bem. Eu sei quem você é. Olha aqui, não sei se percebeu, mas estou um pouco ocupado. Então, ande logo e diga-me, está a procura do que?
Bem... na verdade, eu acho que houve um mal entendido. Sinceramente, eu não tinha a menor ideia de que você iria aparecer aqui.

Como assim? Você está de brincadeira com a minha cara? Você acha que eu não tenho o que fazer, não?! Ora essas... mal entendido... mal entendido... se eu tivesse um pouco mais de altura eu te mostrava o mal entendido fazendo você engolir esse maldito sapato!

Isto não é um sapato! É um all star!

E o que você entende de calçados? Não sabe nem direcionar por onde anda.

É. Você parece me conhecer bem.

Eu não faço a menor ideia de quem é você. Olha aqui, Roberto... é Roberto seu nome? Eu sou tido como o guardião dos mais valiosos tesouros do mundo. Você faz o favor, diga-me algo que queira, eu lhe revelo onde está e a gente acaba logo com isso. Pode ser?

Tudo bem. Eu estava procurando a Saudade. Você sabe onde eu posso encontra-la?

Por alguns instantes, o leprechaun pareceu mudar o seu humor de ranzinza para um ser cabisbaixo e meditabundo.

Eu... bem... esse tesouro eu não posso te ofertar.

Eu já imaginava.

Mas, se você a procura, você pode me ajudar.

Eu? Como?

A Saudade me foi roubada. Eu estou há algum tempo atrás dela e já tenho algumas pistas. Você é um cara grande e robusto, pode me ajudar a encontra-la.

Eu... tudo bem. Vamos lá.

Terminamos nossa cerveja e na hora de pagar a conta o leprechaun pediu que eu lhe pagasse a dele, pois estava passando por uma fase ruim na sapataria. Paguei e saímos do PUB.



terça-feira, 25 de junho de 2013

DA NECESSIDADE HUMANA DE MOVER-SE, COMOVER-SE, EMOCIONAR-SE




É interessante como a carga massiva de trabalho nos impede de perceber e sentir as belezas da leitura de um poema. Eu falo do poema que se apresenta lírico, que divulga um sentimento no tecido cotidiano de um poeta desconhecido, distante, que o leitor trabalha em advinhá-lo o tempo todo, saqueá-lo espiritualmente e senti-lo, quase como sendo empírico. 

A vida moderna massifica até nossa leitura e a capacidade humana de se emocionar. A emoção na leitura poética é muito importante. Digo e repito, é a coisa mais importante. Se você ler a Poética de Vinicius de Moraes com um olhar viciado, são somente palavras de um velhote que choraminga. Mas se você deposita naquela leitura a crença de mover-se em conjunto com o poeta, se você necessita de uma fulga de seu estado de conforto, a poesia acontece. O lirismo ferve dentro de você.

Então temos a necessidade cotidiana de muitas coisas. Então temos a necessidade humana de nos decepcionar, nos entediar, nos enraivecer, nos entristecer e nos apaixonar. Temos também a necessidade de sentir saudades. De sentir aquela saudade do que se foi, do que não volta - e você sabe que não volta -, do que nunca existiu - e você fantasia a existência. Surge a necessidade do lirismo. A necessidade da poesia preencher um espaço paratópico em sua vida. A poesia está em tudo e não está em nada ao mesmo tempo.

E invejo os versos de Vinicius, colocando-os como meus, para encerrar essa necessidade de emocionar-se intensa e subjetivamente, nesta terça-feira chuvosa:


Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

- Vinicius de Moraes


Poética II

Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!

- Vinicius de Moraes


Sinto falta de você. Você que nunca existiu.

- Ricardo Celestino