domingo, 25 de maio de 2014

04 - REABERTURA

TRILHA SONORA RECOMENDADA



II

O livre-arbítrio arbitrário que consome minha liberdade com a lembrança de me alimentar



O dia seguinte fora reproduzido por vários dias em uma rotina religiosa. Meu pai levantava cedo e sumia para o mundo. Ficávamos sem saber a hora que voltava, se comeria em casa ou na rua, se jantaria. Quando voltava, ou vinha com um mal-humor peculiar que garantia uma nova discussão entre ele e minha mãe, ou trazia uma coisa ou outra que conseguia na rua em troca de serviço: marmita pra duas pessoas, roupa para minha mãe, brinquedo velho para eu e meu irmão. Mas nossa relação estava abalada. Fora as primeiras vezes que tive meu pai como um estranho, em não poder me aproximar nem conversar. Ele vivia stressado e arrumava motivo para injuriar as pessoas, quando não conseguia trazer nada de fora de casa. Com isso eu fui amadurecendo cedo demais, e ao invés de passar o tempo todo na rua, brincando e arrumando encrenca, comecei a me virar para trazer alguma coisa pra casa, nem que essa alguma coisa beneficiasse apenas eu e meu irmão.

Saíamos cedo de casa, quase em seguida de meu pai, e andávamos para longe, ultrapassando os limites permitidos por minha mãe da rua de minha casa. Parávamos em um farol e lá ficávamos pedindo coisas: moedas, dinheiro, comida, brinquedo, qualquer coisa. Conseguíamos coisa ou outra, porque percebíamos que as pessoas não se comoviam muito com a nossa situação. O trânsito de veículos, o stress das ultrapassagens e do atraso de compromissos, garantia àquelas pessoas uma couraça dura de comoção, que fazia-os nos olhar com caras de impaciência, nos deixando, muitas vezes, até sem graça. Meu irmão, teve dias, de voltar chorando pra casa ao ouvir de um motorista: 

- Não coloca essa mão suja na minha porta, macaquinho! 

Nossa vontade era jogar pedra no carro, xingar o motorista, mas não fizemos nada. Fomos embora pra casa, com o pouco que conseguíamos. Se chegássemos sem fome já não tinha motivo de discussão e era só deitar e dormir. Minha mãe, muito preocupada com a situação econômica de casa, não se importava muito onde a gente ficara todo aquele tempo. Quando chegávamos exigia que tomássemos banho e que ficássemos quietos, caso meu pai estivesse em casa, porque era o dia em que ele não conseguira bico algum e não traria dinheiro pra casa. 

Mas o ofício de pedinte também tinha muita concorrência. Fora difícil nos firmarmos em um único farol. Chegávamos cedo e já tinha dois, três ou quatro garotos, com roupas iguais ou piores que a nossa, pedindo esmolas e comidas no vão das janelas dos automóveis. Quando parávamos, nem sempre a recepção deles era positiva: davam tempo para irmos embora, para outra rua, porque aquele ponto era deles. Uma vez desrespeitamos o aviso. Eu, sempre magricelas e muito mais alto para minha idade, andava na frente. Meu irmão, mais troncudo e barrigudo, menor que eu, mas com bastante força, andava mais para trás. Chegamos em um farol de uma rua bastante movimentada e sentamos no meio-fio da calçada. Cerca de cinco minutos depois, avistamos chegar três garotos muito parecidos com nós. Dois menores corriam na frente sorrindo, se estapeando de brincadeira, enquanto que o mais velho, um pouco mais adulto em sua infância que os demais, ia vigilante atrás. Ao nos avistar gritou alguns dizeres, muito rápidos que eu não tive tempo de entender. Os dois menores entenderam. Ficaram os três lado a lado e eu e meu irmão de frente a eles. Disse que chegara primeiro. Disse que mentira, que eu já estava lá. Fora o suficiente para começar o quebra pau. Ele fechou a mão e acertou-me em cheio no olho esquerdo. Senti o rosto lacrimejar e já não enxergava mais nada. Meu irmão, me surpreendendo, agarrou o saco de meu agressor. Ouvi o garoto gritar. Os demais alvejavam meu irmão de socos e chutes, no rosto, nas pernas, nas costelas, e meu irmão não largava as genitais do maior. Eu, recuperando minha visão, corri em direção dos dois e consegui pegá-los pelo elástico do shorts e arremeçá-los contra a rua. Eram pequenos. Bem menores que meu irmão. Um carro freiou bruscamente, mas não evitou o atropelamento de um dos garotos. A roda esmagou-lhe o pé. O outro, assustado, correra. O motorista, ainda mais assustado, acelerou e terminou de esmagar o pé do garoto. Cruzou o farol vermelho e foi embora. O mais velho, observando o estrago de seu colega, ou irmão, deu três socos seguidos na nuca de meu irmão que desmaiou. Ele agarrou o companheiro, colocou-o nas costas e foi embora. O menino chorava muito. Percebi na rua uma grande poça de sangue. Fui ao encontro de meu irmão e seu rosto estava irreconhecível: os dois olhos estavam muito inchados e sua boca sangrava, faltando-lhe dois dentes. Coloquei-o nas costas e fomos embora daquele farol. Já formava trânsito, pois cada um que passava tirava o pé do acelerador para apreciar a briga ao vivo e contar aos seus próximos: não era todo dia que o espetáculo saía das televisões. Alguns gritavam grosserias, outros instruções. 

Cheguei em casa muito mais tarde que o normal, naquele dia. Minha mãe e meu pai estavam na rua. Meu pai por dever, minha mãe por preocupação. Ao avistarem meu irmão com os olhos inchados e meu ollho roxo, meu pai foi o primeiro a se dirigir a mim: 

- Olha o teu tamanho para bater no teu irmão, seu moleque! 

Mal tive chances de explicar o ocorrido. Meu pai me agarrou pelos cabelos e levou minha cara ao chão, com força. Enquanto me desferia dois chutes nas costelas ao vivo, para todos da rua ver, minha mãe agarrava meu irmão e puxava meu pai pelo braço, tentando evitar a atração. Muita gente saíra para ver o que acontecia. Ninguém falara nada. A cena não era comum na nossa vizinhança. Nunca fora, mesmo acontecendo as vezes. Senti meu supercílio abrir com a pancada de cabeça no chão. Meu sangue ficou ali, manchando a passagem das pessoas na calçada. No instante em que meu pai me desferiu o primeiro chute, a pressão em minhas costelas me fez doer o estômago e esquecer da dor que sentira na cabeça. O segundo amortecera tudo. Fui pra casa chorando, com dores nas costelas, mal conseguindo respirar. 

Não quebrei nada, mas a sensação de dolorido durou semanas. Não desmenti a crença de meu pai. Nem meu irmão. Para eles, tínhamos brigado um com o outro. Achei melhor assim. Se eu já tinha recebido a punição, o que adiantaria reverter aquela situação a meu favor? Aliás, se meu pai soubesse que eu e meu irmão viráramos pedintes de rua, a surra seria em dobro, para os dois. Se ele soubesse, ainda, que eu deixei que fizessem aquilo com meu irmão, a surra seria em triplo pra mim. Meu olho piorou nas semanas que seguiram. O corte no supercílio infeccionou por falta de cuidado e acabou enxendo de pus. Em poucos dias já não enxergava mais nada pelo olho machucado. A cor dele mudara também. O olho ficara branco, esbranquiçado. O outro castanho. Não liguei muito não. Na rua, era o único. Só senti que tinha que forçar mais o outro olho na hora da leitura. 



Nenhum comentário: