domingo, 14 de julho de 2013

09 - UM ENCONTRO COM A SAUDADE

Brand entrou na frente, pela porta principal. Quando abriu, uma cortina de fumaça me cegou e só consiguia escutar homens repetindo versos em um idioma desconhecido. Reconheci, pouco a pouco, que o que eles falavam ia tomando a forma da língua portuguesa e os versos se repetiam, como um mantra ou uma oração e eu passei a ouvi-los tentando decorá-los.


Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras...
As primaveras do sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo...
Cantabona! Cantabona!
Dlorom...
Sou um tupi tangendo um alaúde!

Eu olhei para Brand e ele me olhou, carrancudo:

- O trovador, de Mário de Andrade.

Sabia já ter ouvido aqueles versos em algum lugar. Mas soavam diferentes. Eram estridentes no ouvido e estouravam em meu cérebro. Senti meus ouvidos sangrarem e, ao passar a mão próximo de minhas orelhas, meus dedos estavam úmidos de sangue. O som daquele idioma ferira meus tímpanos pela falta de costume em apreciar bons poemas?

Sou um tupi tangendo um alaúde

E eu não conseguia entender lógica naquilo tudo. Conforme a fumaça diminuia, fui percebendo que a sala de estar estava enfeitada com inúmeros quadros de pinturas históricas, algumas esculturas e livros abertos em exposição. As pessoas se reuniam no centro e nas bordas ficavam os materiais de exposição. Percebi que eram obras de datas distintas, todas misturadas, tendo um Picasso ao lado de um Da Vinci. Contudo, existia uma simetria, ou lógica na organização das obras que eu não conseguia identificar.

Sou um tupi tangendo um alaúde

Fiquei durante alguns segundos hipnotizado com a quantidade de esculturas e quadros que enfeitavam a sala. A arquitetura da sala também era curiosa, pois parecia gótico-medieval, com o pé direito alto que oprimia o homem o tratando como uma mera formiga dentro de um arranhacéu maior do que  o ser humano. Divinamente superior a todos que ali estavam. A própria casa nos engolia com seu pé direito enorme. Sentia-me chutado. Em meio às pessoas que repetiam o mantra, surge um homem negro, de bermuda vermelha, sem uma das pernas, sorrindo em minha direção. Pensei em saudá-lo saci, mas lembrei de minha conversa com Brand e sorri reciprocamente.

- Olá...
- Brand. Roberto. Esperávamos vocês.

Brand o saudou e deixou-me para trás, andando em direção às pessoas da sala.

- Ele é sempre tão...
- Você o chamou de Leprechaun?
- Como não chamar?

Sorrimos.

- Desculpe ir direto ao ponto, mas quem são vocês?
- Nós? Somos parte de sua história. Também somos caçadores da saudade. Todos temos um motivo para sauda-la. Eu, no caso, sinto falta de minha floresta, meu cachimbo, meu gorro vermelho e minha juventude. Sou simplesmente um saci urbano.

- Eu... Fiquei com medo de chamá-lo saci, depois de conhecer Brand.

- Sei como é. O Brand cumpriu seu papel. Bem, ele é o guardião de um tesouro. Quando alguém aprisiona Brand, ele precisa lhe conceder um tesouro. Lhe apresentou para nós, o tesouro intelectual de toda essa região.

- Todo tesouro intelectual está nessa sala?

- Não. Jamais! Nós somos a base para que você entenda o tesouro intelectual de toda essa região.

- Certo.

- Mas você não veio aqui a trabalho.

- Não. Eu busco, na verdade, achar um caminho de felicidade e parece que a Saudade tinha a resposta e eu desperdicei a chance de consegui-la. Queria encontrá-la novamente. Conversar, anotar todas as suas palavras...

- Você é jornalista. Porque não inventa sua felicidade?

- Não sei. As coisas não são tão simples assim. Eu acho que necessito de algo real dessa vez.

- Entendo. Você acredita que o real existe?

- Oras.. É cla... Não sei.


- Ao invés de me chamar de saci, me chame de Matinta. Venha, vou lhe apresentar ao meu amigo Curupira. Ele vai te apresentar a casa e te guiar para seja lá onde for.


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