domingo, 30 de junho de 2013

07 - UM ENCONTRO COM A SAUDADE


O Tatuapé. A Esperança me recomendou o Tatuapé para tentar me reencontrar comigo mesmo em minha adolescência e, quem sabe assim, conseguir encarar melhor o presente.

Entrei em um PUB irlandês com bandeirolas verdes e laranjas decorando o ambiente interno escuro e rústico. Era festa e de comemoração ao Saint Patrick. As melhores recordações que eu tinha de minha adolescência eram nas comemorações de Saint Patrick. O local se transformava de um lugar triste, vazio e intimista para uma grande festa alegre com pessoas bêbadas e simpáticas querendo testar os limites de elegância, vaidade e sexualidade em uma única noite.

O bar estava lotado. Enquanto não havia um lugar para sentar, pedi uma caneca de cerveja verde e fiquei no balcão. Mal chegara minha bebida e um casal se movimentava para pagar a conta.

Encontrei um sofá livre.

Assim que eles saíram, me acomodei. Por coincidência, era o lugar que sempre ficava em minha adolescência. Contudo, o PUB se sofisticara. No porta-guardanapos havia um botão vermelho que imaginei, chamava o garçon. O garçon não era mais apenas o dono do PUB. O garçon se multiplicara em muitas pessoas uniformizadas que serviam muitas mesas e não tinha mais tempo para lhe servir o espírito. Para um cara como eu, ir ao bar não era apenas uma necessidade alcoolica, mas também afetuosa. O afeto, muitas vezes era correspondido pela companhia do dono do bar. Uma figura que passava a ser quase folclórica no Tatuapé.

Apertei o botão e surgiu ao meu lado um homem minúsculo, muito parecido com um leprechaun irlandês. Eu não me assustei pelo milagre da aparição, mas pela falta de aviso. Sorri. Em sua mão, ao invés de uma caneca de cerveja, ele segurava um tênis all stars rasgado. Olhou-me, lhe ofereci minha bebida a ele. Ele sorriu e aceitou. Pedi outra que veio muito rápido.

Por alguns minutos não conversamos. Ele parecia muito concentrado em apreciar-me. Pouco sorria. Era um tipinho engraçado se fosse simpático, mas com aquele olhar carrancudo, vestido naquelas roupas fora de época, mais assustava do que alegrava.

Depois de alguns minutos, decidi quebrar o gelo.

Olá. Você é...

Tumores, Duendes, Gnomos, eu tenho muitos nomes. Você é... – a resposta era fria, tão fria que não combinava nada com o estereótipo que ele carregava.

Eu sou... eu sou o Roberto. Sou jornalista e...

Tudo bem. Tudo bem. Eu sei quem você é. Olha aqui, não sei se percebeu, mas estou um pouco ocupado. Então, ande logo e diga-me, está a procura do que?
Bem... na verdade, eu acho que houve um mal entendido. Sinceramente, eu não tinha a menor ideia de que você iria aparecer aqui.

Como assim? Você está de brincadeira com a minha cara? Você acha que eu não tenho o que fazer, não?! Ora essas... mal entendido... mal entendido... se eu tivesse um pouco mais de altura eu te mostrava o mal entendido fazendo você engolir esse maldito sapato!

Isto não é um sapato! É um all star!

E o que você entende de calçados? Não sabe nem direcionar por onde anda.

É. Você parece me conhecer bem.

Eu não faço a menor ideia de quem é você. Olha aqui, Roberto... é Roberto seu nome? Eu sou tido como o guardião dos mais valiosos tesouros do mundo. Você faz o favor, diga-me algo que queira, eu lhe revelo onde está e a gente acaba logo com isso. Pode ser?

Tudo bem. Eu estava procurando a Saudade. Você sabe onde eu posso encontra-la?

Por alguns instantes, o leprechaun pareceu mudar o seu humor de ranzinza para um ser cabisbaixo e meditabundo.

Eu... bem... esse tesouro eu não posso te ofertar.

Eu já imaginava.

Mas, se você a procura, você pode me ajudar.

Eu? Como?

A Saudade me foi roubada. Eu estou há algum tempo atrás dela e já tenho algumas pistas. Você é um cara grande e robusto, pode me ajudar a encontra-la.

Eu... tudo bem. Vamos lá.

Terminamos nossa cerveja e na hora de pagar a conta o leprechaun pediu que eu lhe pagasse a dele, pois estava passando por uma fase ruim na sapataria. Paguei e saímos do PUB.



terça-feira, 25 de junho de 2013

DA NECESSIDADE HUMANA DE MOVER-SE, COMOVER-SE, EMOCIONAR-SE




É interessante como a carga massiva de trabalho nos impede de perceber e sentir as belezas da leitura de um poema. Eu falo do poema que se apresenta lírico, que divulga um sentimento no tecido cotidiano de um poeta desconhecido, distante, que o leitor trabalha em advinhá-lo o tempo todo, saqueá-lo espiritualmente e senti-lo, quase como sendo empírico. 

A vida moderna massifica até nossa leitura e a capacidade humana de se emocionar. A emoção na leitura poética é muito importante. Digo e repito, é a coisa mais importante. Se você ler a Poética de Vinicius de Moraes com um olhar viciado, são somente palavras de um velhote que choraminga. Mas se você deposita naquela leitura a crença de mover-se em conjunto com o poeta, se você necessita de uma fulga de seu estado de conforto, a poesia acontece. O lirismo ferve dentro de você.

Então temos a necessidade cotidiana de muitas coisas. Então temos a necessidade humana de nos decepcionar, nos entediar, nos enraivecer, nos entristecer e nos apaixonar. Temos também a necessidade de sentir saudades. De sentir aquela saudade do que se foi, do que não volta - e você sabe que não volta -, do que nunca existiu - e você fantasia a existência. Surge a necessidade do lirismo. A necessidade da poesia preencher um espaço paratópico em sua vida. A poesia está em tudo e não está em nada ao mesmo tempo.

E invejo os versos de Vinicius, colocando-os como meus, para encerrar essa necessidade de emocionar-se intensa e subjetivamente, nesta terça-feira chuvosa:


Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

- Vinicius de Moraes


Poética II

Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo:
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!

- Vinicius de Moraes


Sinto falta de você. Você que nunca existiu.

- Ricardo Celestino



domingo, 23 de junho de 2013

06 - UM ENCONTRO COM A SAUDADE

A Mooca foi um dia um apêndice da Itália jogada na cidade de São Paulo. Quem me dera ainda fosse assim...

Dentro da coxinha encontrei um recado que potencializou minhas esperanças em encontra-la novamente.

Você está em todo lugar. É estranho...

Eu piso num bar e pareço observar um encontro de juventinos revoltados torcendo pelo seu time fracassado. Todos vão envelhecendo, vão envelhecendo... e morrem ali no bar. Viram esqueletos vestindo grená.

Sento numa mesa próxima ao rei Pelé. O bar tinha vários jogadores estampados, mas o Pelé sempre fora o meu preferido.

Diziam que aquele bairro era especial nas pizzas, e o bar o melhor nas porções. Pedi um chop e uma porção de bolinhos.

Era sábado. Todos os jornalistas trabalhavam, mas o departamento de cultura tinha folga. Era fim de semana para nós.

Um homem caminha em direção a minha mesa.

Boa tarde. Posso sentar com você?

Claro. Você é...

Quem esperava...

Humm...

Então, frio né? – acende um cigarro.

Um pouco...

 Tinha épocas em que chovia fino, uma garoa. Era o apelido da cidade. Os gritos não secavam. Mas o que corria pelas sarjetas eram mares diferentes. Um sangue grosso da oposição.

Você é poeta?

Escritor. Escrevo o mundo.

Humm... estive com a Saudade.

Muito prazer, me chamo Esperança.

Bem, esperava uma garota, mas tudo bem. Hoje em dia é difícil arrumar alguém para um bom papo.

Quantas vezes tentou compreender os outros?

Como assim?

A vanguarda... ela normalmente busca novos caminhos do marginal, até virar aplausos e se cansar.

Entendo. Mas elas secaram?

Jamais! Se fossem tão perceptíveis, que razão teriam?

Entendi.

Você tem um pouco de preguiça?

Como assim?

Vontade de ficar deitado?

Tenho... o dia todo. O mundo fede...

A merda.

Toma cuidado onde pisa... por que as vezes quem está fedendo é...

Olha aqui! Me desculpa mas essa conversa está bizarra demais pra mim. Você é bem desanimador! Eu queria apenas alguém para conversar, e não uma consulta psiquiatra com um outro louco.

Desculpe... não sou palhaço.

Levanto e pago a conta. Sabe, é difícil encontrar alguém que não seja um babaca para conversar.


O cheiro de café às vezes me enjoa. No jornal, as pessoas têm manias estranhas de perseguir a pobre coitada que prepara a bebida. Fico imaginando que se trocassem café por cocaína, todos os consumidores de café iriam morrer de overdose e eu talvez ficaria mais feliz.
Minha felicidade depende demais das pessoas ao meu redor.


Estou sozinho...


sexta-feira, 21 de junho de 2013

O OLHAR CARRANCUDO DE ROBERTO SOBRE AS MANIFESTAÇÕES PÚBLICAS... UM ADENDO SOBRE A SAUDADE

Eu caminhava em direção ao metrô, destino à Avenida Paulista. Saí a mando de meu chefe, lá do jornal em que eu trabalho.

´´Não importa que isto não é uma coluna cultural! Você é jornalista! Todos estão na rua se manifestando! Vá! Vá acompanhar o manifesto e me traga furos! Furos de reportagem!´´

Assim fui, com a necessidade de manter-me empregado. Na minha cabeça, ouvia zunir durante todo o caminho do jornal até a Avenida Paulista:

´´Inferno de vida! Eu que sempre desejei escrever sobre literatura, arte e afins, tenho que me meter a correr de polícia, desviar de bombas de gás lacrimogêneo, correr o risco de ficar cego de um olho – como aconteceu com a moça de um jornal grande – só porque aquele otário não tem mais gente para mandar cobrir o local.´´

E o ofício começou já bem antes de chegar na manifestação. No metrô as pessoas, com caras pintadas, enroladas em bandeiras, gritando e cantando, rumavam para a manifestação. Uns, mais exaltados, batiam nas paredes do trem para fazer ainda mais barulho. Em noites de futebol, aquele gesto agredia as pessoas ali sentadas, mas naquela noite não. Elas acompanhavam os manifestantes com os olhos, sorriam, estavam felizes também.

Um homem, que eu jurava não participar de toda a movimentação, levantou-se e se uniu ao grupo. Ao grupo que gritava:

´´Conseguímos! O prefeito cedeu! O prefeito cedeu!´´

E o homem, participando do coro, ajudou:

´´Mais saúde! Pela saúde!´´

Um senhor, de lá do fundo do trem, esquecendo da necessidade de sua bengala, pulou de uma perna só até o grupo de manifestantes e também ajudou o coro:

´´Fora Dilma! Fora presidenta! Pelo fim do PEC 37!´´

E um casal de garotos, mobilizados pelo coro, ou vencidos pela falta de condições de manterem um diálogo entre si, resolveram também aderir aos gritos:

´´Fora Feliciano! Cure a sua viadagem!´´

E eu tomei nota de tudo que acontecia ali. Às vezes sério, às vezes sorrindo, percebi que as pessoas se uniam e desuniam nas defesas de suas causas.

A porta do metrô abriu na estação Liberdade. Nunca vi tanta gente entrando por aquela estação. O trem cabia um estádio inteiro de futebol. Ninguém se incomodava com a superlotação. Todos conseguiam um espaço e parece que o próprio espaço físico do trem se ampliava. Eu tomava nota de tudo que acontecia e os blocos de papeis que eu julgava, acabavam, se multiplicavam automaticamente em milhares de textos e anotações. Cada detalhe, cada grito, gritos repetidos, as pessoas em um furor de manifestações, criticavam até mesmo as práticas sexuais de seus vizinhos.

Entraram no trem dois pastores e uma puta. Eles se olhavam e caminhavam juntos, com a cautela nos olhos, mas com o respeito de deixar os preconceitos atópicos e imperceptíveis.

De repente, estacionados na Liberdade, vimos um comboio de manifestantes embandeirados. Bandeiras vermelhas brandiam o céu da área externa do metrô. A população que somavam dez mil, dentro daquele vagão, se emudeceu. Um mais exaltado atirou uma pedra em direção ao comboio e gritou:

´´Essa bandeira não! Some daqui, filho da puta!´´

As portas do vagão se fecharam e os manifestantes embandeirados tiveram de esperar o próximo trem para irem à manifestação. Dentro do vagão, todos, paulatinamente, começavam a voltar a ser o que eram. O velho agarrou-se em sua bengala, a puta cuspiu no pastor e o outro a endemoniou, o casal homossexual se emudeceu em seu canto e o homem que gritava por mais saúde continuou o grito, murmurado no canto da boca.

Meus papeis acabaram e só consegui dar o título à matéria que escrevi:


``Manifestação ou micareta, reivindicação ou festa: distribuição de convites no metrô Liberdade.´´




quinta-feira, 20 de junho de 2013

MARSHALL BERMAN... TUDO QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR... MARX... AUTODESTRUIÇÃO RENOVADORA!!

Em Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman realiza um ensaio histórico e literário da sociedade e da cultura dos séculos XIX e XX. Ele se vale da crítica literária, das ciências políticas, da arquitetura e urbanismo, para tecer argumentos críticos acerca das obras Fausto, de Goethe, o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, os poemas de Charles Baudelaire, a ficção de Dostoievski até chegar nas produções literárias de vanguarda dos anos de 1980.

A obra de Marshall Berman me ajudou a entender muito bem o marxismo. Baseado no lema Tudo que é sólido desmancha no ar, o autor defende uma autodestruição renovadora nas artes, na política, nas práticas sociais. Defende a ideia de que tudo que se solidifica em um tempo, tende a desmanchar no futuro. Assim são e foram as ideologias que fizeram parte de nossa formação cultural e ideológica e que nós temos muitas reservas em não renová-las. Todas as revoluções e manifestações aconteceram dentro de um contexto específico que não se repete. Podem muito bem se assemelhar e aí o autor defende a necessidade de renovação, de destruição renovadora do passado, aproveitando o que dá para aproveitar. Assim caminhamos, historicamente, até chegarmos na sociedade de hoje.

Em Tudo que é sólido desmancha no ar, conseguimos perceber o processo histórico da formação social. Os benefícios da sociedade capitalista e a necessidade de mudança dessa sociedade paulatinamente. Ainda, o autor propõe uma visão pós-moderna das teorias marxistas, pautadas na reformulação de conceitos, visando sempre um bem comum. Dentre as passagens que mais me chamaram atenção, segue abaixo:


´´´Neste ponto caberia perguntar: não existem já interpretações de Marx em número mais do que suficiente? Será que realmente precisamos de um Marx modernista, outro espírito afim de Eliot e Kafka, de Schoenberg e Gertrude Stein e Artaud? Eu penso que sim, não apenas porque Marx aí está, mas porque tem algo distinto e importante a dizer. Com efeito, Marx pode dizer-nos do modernismo tanto quanto este nos diz do próprio Marx. O pensamento modernista, tão brilhante e iluminador do lado escuro de todos e tudo, vem a ter os seus próprios e reprimidos cantos escuros, sobre os quais Marx pode fazer incidir nova luz. (...)´´


terça-feira, 18 de junho de 2013

OS CONDENADOS DE OSWALD... A CATARSE DA LITERATURA... A NECESSIDADE DE REVOLUCIONAR-SE

Segundo Suzi Franki Sperber, a relação entre literatura e o processo político já é trabalhada indiretamente por Aristóteles, quando fala sobre a função social da arte. A arte é realizada como uma catarse promovida pelo mundo ficcional que ela cria e o mundo real que ela analisa e questiona. Aproveitando o momento de manifestações, é interessante pensar como a arte potencializa nosso senso crítico para os problemas sociais que perduram em nosso país. Claro que ela não tem apenas esse objetivo. Aliás, não seria legal tratar as reflexões sociais presentes na literatura como um objetivo, mas sim como uma característica constitutiva a todo texto literário. Se se faz literatura, automaticamente se faz especulações sobre a sociedade em que se vive, ou direta ou indiretamente.

Eu tenho facilidade em compreender a atualidade, a partir do que me diz os clássicos. É uma opção pessoal de como entender melhor o mundo e as coisas. Uma obra que me vem a tona quase sempre que me deparo com questões sociais efervescentes é a trilogia OS CONDENADOS, de Oswald de Andrade. A leitura flui como um best-seller. A leitura te empolga com as palavras de um bom romancista e um gênio que é Oswald de Andrade.

Os personagens de Os Condenados exilam-se em si mesmos e só se comunicam precariamente pela dor, - uma dor nua, um sofrimento mudo, uma agonia resignada jamais gritada. Padecendo da exploração do trabalho, da prostituição do corpo, da implacabilidade do destino, os personagens de OS CONDENADOS vivem na falta de esperança, no absurdo, no trágico. Estão presentes, numa realidade sem compaixão pelos fracos, a prostituta-mãe santificada (Alma), a criança sofredora (Luquinhas), o malandro brutalizado (Mauro Glade), o operário sonhador (João do Carmo).

Nenhum deles racionaliza, filosofa ou reflete sobre os caminhos cinzentos que percorrem sob a garoa paulistana. A mesma São Paulo que presencia, hoje, uma mudança que, creio, é necessária, é palco da trilogia OS CONDENADOS. Oswald, em 1941, já implorava pela necessidade do homem revolucionar-se dia-a-dia, internamente, na reformulação de valores e conceitos sociais.

Fico feliz! É a primeira vez, em minha geração, que políticas públicas são discutidas a frente do futebol.




domingo, 16 de junho de 2013

05 - UM ENCONTRO COM A SAUDADE

``Faz tempo que ninguém me pergunta nada...``

``Enquanto as páginas gritam palavras, meu mundo não grita nada!``

``A falência de uma nação está na dificuldade em usar a língua.``

Tudo parece criado, feito...

A cesta da minha sala já foi esvaziada quatro vezes. Preciso escrever sobre a cegueira e justificar meu passeio de quarta-feira. Já é quinta a tarde e nada. O editor já acostumou com meus atrasos. Todos já se acostumaram comigo... eu já me acostumei com todo mundo.

Sabe, escrevo sobre Hollywood como escrevo sobre minhas meias... e eu digo, não há nada que escrever sobre minhas meias.

Meia página é tudo que consigo. Foram dez folhas impressas, sete com frases que me vieram na cabeça e achei interessante guardar.

Minha sala é informatizada e de brinde ganhou operadores robôs: sorrie, trabalhe, se excite, desligue-me e vá almoçar.

Sinto falta de um papo com ela...

No fim do dia meu corpo é uma geléia ainda por se formar. A sorte é que minha casa é próxima do ponto de ônibus e perto da praça que a encontrei.

Sento no mesmo lugar.

- Oi? Você está aí?

Sinto um cheiro de perfume doce do meu lado. Viro a cabeça lentamente e vejo um pom-pom roxo servindo de cabelos na cabeça de uma senhora.

- Ahn... desculpe senhora...

- Louco!

Ela não viria...

Pelo menos não esqueceria meus cigarros com ninguém.


Levanto e continuo procurando a Saudade. Com tanta gente viva, fui me apaixonar por uma instância de solidão. Ela tinha uma beleza ímpar. Conseguia me trazer a lembrança de coisas boas.
Eu queria revê-la para falar das coisas legais. Minha vida não foi apenas lamentações. Eu tinha amigos. Eu tinha histórias de boteco. Eu gostava de ler livros e cantar músicas em língua estrangeira.

Parece que o tempo passado se potencializa no meu tempo presente. Algumas semanas atrás fazem parte da minha história com o pesar de uma caravela saindo de Portugal. Sou o velho do Restelo? Será que eu sou aquele que traz o mau agouro para o fluxo natural da vida?

As Grandes Navegações eram o fluxo natural da vida portuguesa? Será que precisamos ser o que somos? Eu fico me projetando para um futuro que a Saudade saberia muito bem me explicar.

Como faz para revê-la? Preciso gritar cinco vezes? Preciso achar um talismã sagrado? Tenho que sacrificar uma virgem? Queria muito saber. Essa resposta eu encontro...

De baixo do meu nariz! Enquanto eu andava pela rua de minha casa, com a fome de um almoço passado, consegui entender a dica da Esperança, lá no Museu do Ipiranga.

- Senhor, eu quero essa coxinha.

- Qual? Essa?

- Senhor, a da esquerda, a menor.

- Olhe, essa aqui tá muito mais bonita e é maior...

- Inferno! Eu quero aquela! Eu preciso daquela coxinha!

- Que diabos! Toma essa coxinha! Demônio, são todas iguais!