Tchékhov, ao lado de Gogol, Maupassant e Poe, é um dos
maiores contistas da literatura universal - na minha singela opinião. Diferente
de Poe, ele não explora o terreno do horror fantástico, mas sim o medo social
dos temas comuns do cotidiano de vidas inexpressivas que fazem parte de uma
sociedade russa ainda Czarista. Seus personagens possuem a dimensão humana
presenciada em nossos tempos, sob a influência do consumismo capital. da
conveniência dos papeis sociais e das classes que fulano de tal ocupa,
apresentada em uma narrativa de humor, melancolia e muita ironia.
Pessoas comuns, vidas comuns e uma obra eterna. Destaco o
conto O Gordo e o magro, da obra A corista e outras histórias, de Tchékhov,
onde nas bancas paulistanas sai pela bagatela de R$ 5,00 (impressos na capa)
pela edição Coleção 64 Páginas, da L&PM pocket. O conto nos mostra algo
fundamental para nossa história contemporânea (segundo o meu singelo olhar
leigo): a revolução funciona na cabeça de cada indivíduo, no dia-a-dia, e não
no golpe de Estado de determinados grupos. Observamos que, diante de tantas
lutas e tantas reformas promovidas pelos Bolcheviques, presenciamos as mesmas
mentalidades czaristas modernizadas em suportes inovadores de Ipads e redes
sociais.
Aproveitem a leitura do conto O Gordo e o magro, de
Tchékhov.
O GORDO E O MAGRO
´´Na estação de
caminho-de-ferro «Nikolaevskaia» encontram-se dois amigos – um gordo e o outro
magro.
O gordo acabava
de almoçar no restaurante e tinha os lábios lambuzados de manteiga, nédios como
cerejas maduras, cheirava a xerez e a fleur-d’orange. O magro
entretanto, saía do comboio e estava carregado de malas, trouxas e caixas.
Cheirava a presunto e a borras de café. Por trás das suas costas espreitavam a
esposa, uma mulher franzina de queixo alongado, e o filho, um colegial, alto e
um olho semicerrado.
- Porfiri! –
exclamou o gordo ao ver o magro. – És tu, meu velho? Há que tempos não nos
víamos!
- Jesus!
Admirou-se o magro. – Micha! Amigo! Que te trouxe aqui?
Os amigos
beijaram-se três vezes e fixaram um no outro os lhos cheios de lágrimas. Ambos
estavam agradavelmente surpreendidos.
- Meu caro amigo!
– começou o magro. – Não contava ver-te aqui! Que surpresa! Deixa-me ver-te
bem! O mesmo bonitão, como sempre foste! O mesmo janota, o encanto em pessoa,
Aí Jesus! Então, como é? Já estás rico? Casado? Eu já tenho família, como podes
ver… apresento-te a minha mulher Luísa, da família dos Wanzenbach… uma
luterana… O meu filho Nafanail, aluno do terceiro ano. Aqui têm o meu amigo de
infância! Andámos juntos na escola!
Nafanail pensou
um bocado e tirou o boné.
- Sim, andámos
juntos na escola – prosseguiu o magro. – Lembras-te como te chamavam?
Heróstrato* , por teres queimado um livro da biblioteca com um cigarro. E a mim
Efialtes**, pois era queixinhas. Ah! Ah! Éramos crianças! Não tenhas medo,
Nafanail! Chega-te cá mais perto… E eis a minha mulher, da família dos
Wanzenbach… é uma luterana…
Nafanail! Pensou
um bocado e achou por bem esconder-se por trás das costas do pai.
- Então como te
corre a vida? – perguntou o gordo, olhando o outro alvoraçado. – Onde estás, na
função pública?
- Sim, meu velho!
Há dois anos que tenho grau de assessor e a ordem de Estanislau. O ordenado é
baixo, mas isso não vem ao caso. A minha mulher dá lições de música, eu também
montei um pequeno negócio; faço cigarreiras de madeira. Boas cigarreiras, a
propósito. Vendo-as a um rublo cada. A quem comprar dez ou mais, faço desconto.
Cá nos arranjamos como podemos. Antes trabalhava num departamento, agora
metem-me aqui como chefe de secção… Bem, estamos já aqui. E tu, como vais? Não
subiste ainda a conselheiro de Estado, hein?
- Não, meu caro,
estou ainda mais alto – respondeu o gordo. – Sou conselheiro privado… Tenho
duas Estrelas.
De súbito, o
magro empalideceu, petrificado, mas logo o seu rosto abriu-se num sorriso
desmedido e o rosto e os olhos pareciam faiscar. Encolheu-se, curvou-se, ficou
mais estreito… As suas malas, trouxas e caixas também se encolheram,
encarquilharam… O queixo alongado da mulher alongou-se ainda mais, e Nafanail
pôs-se em sentido e abotoou o uniforme do colégio.
- Sim Excelência…
é um grande prazer! Afinal, tenho por amigo de infância, se me permite a
expressão, um alto dignitário do Estado! Ih! Ih!
- Ora, deixa-te
disso! – disse o gordo, fazendo uma careta. – Perdão… mas como é possível…
ciciou o magro, encolhendo-se ainda mais. – a benevolente atenção da Vossa
Excelência é para nós um maná vivificante… A minha mulher Luísa, luterana, se
me dá licença…
O gordo quis
objectar qualquer coisa, mas ao ver no rosto do outro tanta devoção, doçura e
submisso respeito, sentiu-se enjoado. Voltou a cabeça estendeu a mão em jeito
de despedida.
O magro
apertou-lhe três dedos, inclinou-se numa reverência profunda e soltou um
risinho «Ih! Ih! Ih!», como um chinês. Nafanail curvou-se numa vénia e deixou
cair o boné. Todos os três estavam agradavelmente surpreendidos.``
* Herostrato, com
intuito de imortalizar o seu nome, incendiou em 356 a.c. o Templo de Ártemis,
em Efeso, uma das sete maravilhas do mundo.
** Efialtes traidor
do povo grego que, na batalha de Termópilas (480 a.c.) indicou o caminho
secreto aos Persas.